DESTAQUES

Clipping – Por que os cartórios registram mais mortes por covid-19 do que a Secretaria Estadual da Saúde

Uma das principais explicações é o fato de os cartórios somarem as mortes confirmadas e suspeitas, o que não acontece na estatística oficial da Saúde

O número de óbitos por covid-19 no Rio Grande do Sul é maior nos cartórios de registro civil em comparação com a estatística oficial de mortalidade da Secretaria Estadual da Saúde (SES). Segundo o Portal Transparência dos Cartórios de Registro Civil do Brasil, onde são emitidas as certidões de óbito, de 16 de março a 14 de agosto de 2020 (até as 16h), foram registrados os falecimentos de 2.828 pessoas por coronavírus no RS. No mesmo período, o indicador divulgado diariamente pela SES aponta 2.631 vítimas fatais (até as 14h50min), 197 mortes a menos do que as registradas em cartório.

A principal explicação para a diferença é que, nos cartórios, todas as declarações de óbito (DOs) preenchidas pelos médicos, ainda nos leitos dos hospitais, são contabilizadas como mortes por covid-19, incluindo as que informam “confirmação de morte por coronavírus” e por “suspeita de coronavírus”. O sistema cartorial não faz distinção entre as categorias, somando tudo como covid-19.

Depois de sair do cartório, a DO passa por processos de qualificação do óbito nas vigilâncias em saúde, onde será confirmado por diagnóstico epidemiológico e principalmente por exames, alguns deles pós-morte, se o paciente faleceu de coronavírus ou não. É neste ponto que casos suspeitos podem ser descartados e não aparecerem na estatística oficial da pandemia.

Para Márcia Vaz, 1ª Secretária do Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul (Cremers) e ex-vice-diretora-adjunta do Departamento Médico Legal (DML), há casos de pacientes suspeitos em que falta tempo para se obter o resultado do exame para coronavírus antes do óbito.

— O paciente chega e se faz a hipótese diagnóstica de covid-19 (pelos sintomas e rede de contatos), mas ele evolui rapidamente e morre antes da comprovação. O médico precisa colocar a informação da suspeita de coronavírus na DO, é orientação (do Ministério da Saúde) — relata Márcia.

As famílias levam as DOs aos cartórios para fazer o registro, emitir a certidão de óbito e liberar o corpo para os atos fúnebres. Nos arquivos cartoriais, os casos serão todos contados como covid-19, mas isso não ocorre automaticamente nas estatísticas oficiais de mortalidade.

— Quando chega um caso de morte com suspeita, as secretarias da saúde fazem uma busca ativa para verificar os resultados dos exames. As vigilâncias em saúde vão atrás para checar se deu positivo ou negativo. No cartório fica como coronavírus, mas, na Saúde, só será contado como positivo se o exame confirmar. É isso que explica o cartório ter número maior de mortes — diz Márcia.

Em casos de suspeita, a vítima vai ser tratada como se covid-19 fosse, com cuidados no preparo do corpo. É para evitar possibilidade de contaminação.

MÁRCIA VAZ

1ª Secretária do Cremers

Via assessoria de imprensa, a Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen) avaliou que a hipótese mais plausível para explicar a diferença entre os números é, de fato, a emissão de DOs com a anotação de “suspeita de coronavírus” que, após os resultados de exames, são descartadas.

Nos cartórios, um caso de “suspeita de covid” que tenha sido registrado só é retificado se a família retornar com o resultado de exame negativo. Assim, este caso será descontado da contabilização cartorial.

A anotação da suspeita, seguindo orientações do Ministério da Saúde, acaba causando reflexos para as famílias enlutadas. Mesmo que no pós-morte o resultado para covid-19 dê negativo, o corpo que teve a menção à suspeita no hospital precisa seguir protocolos rigorosos para sepultamento: tampa do caixão fechada e sem realização de velório.

São medidas de segurança, determinadas pelo Ministério da Saúde, para prevenir a transmissão nos atos de despedida, mas que acabam causando sofrimento adicional a parentes: “O corpo deve ser acomodado em urna a ser lacrada antes da entrega aos familiares”, diz a normativa federal.

—Nestes casos (anotação de suspeita na DO), a vítima vai ser tratada como se covid-19 fosse, com cuidados no preparo do corpo. É para evitar possibilidade de contaminação. Infelizmente, há casos em que dá negativo, mas a família só vai saber depois. É feito dessa forma porque prevalece a saúde da coletividade — afirma Márcia.

Em nota, a SES destacou que a DO “não é documento necessário tampouco obrigatório para a confirmação de um caso covid-19 pela vigilância epidemiológica, diferentemente do que acontece nos cartórios de registro civil”. A secretaria ainda afirmou que baseia sua contagem, por meio da vigilância epidemiológica, nos dados registrados nos sistemas oficiais de notificação do Ministério da Saúde.

Os resultados de óbitos, diz a nota, podem ser obtidos por diferentes métodos: os testes PCR (biologia molecular) e os rápidos (detecção de anticorpos), além do critério clínico-epidemiológico. Neste último método, “pode ser confirmado como positivo um caso de síndrome gripal ou Síndrome Respiratória Aguda Grave (Srag) com sintomas compatíveis com a covid-19 e que tenha tido histórico de contato próximo ou domiciliar com caso confirmado laboratorialmente para a doença nos últimos sete dias antes do aparecimento dos sintomas”.

A SES não quis comentar as diferenças entre a sua estatística e a dos cartórios: “Além de serem duas metodologias totalmente diferentes (uma baseada no informe do médico e outra em exame laboratorial na maior parte dos casos), elas obedecem a prazos distintos. (…) Com base nessas constatações, cabe à SES explicar como funciona seu método de confirmação de dados, sem estabelecer ou analisar comparativos com outras metodologias, tampouco tentar explicar alguma eventual diferença com metodologias alheias à governança da Secretaria da Saúde do Estado ou até mesmo traçar considerações a respeito”.

Como são feitas as qualificações dos óbitos com suspeita de covid-19 na vigilância em saúde de Porto Alegre

A Declaração de Óbito (DO) é preenchida pelos médicos nos hospitais. Se há suspeita de covid-19, a DO deve informar “suspeita de Covid”, mesmo que ainda não haja resultado do exame

Semanalmente, a Vigilância em Saúde de Porto Alegre recolhe nos cartórios as DOs emitidas no período, incluindo mortes por todas as causas

As DOs têm três vias: a vigilância em saúde fica com a original, de cor branca. A rosa fica no prontuário do paciente e a amarela, no cartório

Quando as DOs chegam na vigilância em saúde, o primeiro trabalho é separar residentes da Capital e de outras cidades. Segundo a coordenadora da Equipe de Vigilância de Eventos Vitais, da diretoria-geral da Vigilância em Saúde de Porto Alegre, Simone Lerner, “30% a 40% dos óbitos ocorridos em Porto Alegre são de residentes de outros municípios”

As DOs dos moradores de outras cidades são enviadas para o Estado, que faz a distribuição para os locais de origem

Com as DOs dos habitantes de Porto Alegre, a vigilância faz a chamada qualificação do óbito: detalha as causas da morte, o que gera estatística sobre mortalidade, importante para a análise de problemas e desenvolvimento de políticas de saúde

Quando recebe DO com anotação “suspeita de coronavírus”, a vigilância registra o caso no sistema como “suspeito” usando códigos definidos na Classificação Internacional de Doenças (CID). Casos suspeitos de coronavírus levam o código U072.

Casos suspeitos geram investigação de prontuários e vida pregressa da vítima. O resultado do exame é prova importante e adicional: se dá positivo, o caso passa do código U072 (suspeito) para U071 (confirmado). Só os confirmados entram na contagem oficial de mortos por Covid

 
 
FacebookTwitterPinterest