Artigo – Tenho mesmo que recolher ITD pela baixa do usufruto no registro de imóveis pelo falecimento do usufrutuário? – Por Julio Martins
Um belo dia os pais decidem doar seu imóvel a seus filhos, reservando usufruto (geralmente vitalício) e isso pode ser na intenção de evitar um futuro inventário na medida em que desde já o imóvel já teria sido doado aos prováveis herdeiros.
A boa intenção pode até ser legítima e tudo isso pode, mesmo sem orientação especializada, ser feito, direto num Cartório de Notas com a lavratura da Escritura Pública pelo Tabelião de Notas, seguindo o registro no Cartório de Imóveis. Porém o problema pode exsurgir anos depois, com o falecimento, dos doadores, por ocasião da exigência do Registro de Imóveis pelo recolhimento do “restante” do imposto devido.
Teria sido então um bom negócio então a transmissão em vida do bem imóvel aos descendentes através da realização da Escritura de Doação com Reserva de Usufruto?
Da responsabilidade do registrador pela verificação do recolhimento dos impostos nos atos praticados
Por Lei cabe ao Registrador de Imóveis fiscalizar o recolhimento de tributos dos atos que praticar, sob pena de responder solidariamente pelo recolhimento. Assim reza o art. 289 da Lei de Registros Públicos:
Art. 289. No exercício de suas funções, cumpre aos oficiais de registro fazer rigorosa fiscalização do pagamento dos impostos devidos por força dos atos que lhes forem apresentados em razão do ofício.
Neste sentido a já árdua tarefa do Registrador, tributado vorazmente pelo Fisco por sua atividade delegada pelo Estado[i] pode se agravar caso deixe de fiscalizar o recolhimento do Imposto – sendo oportuno lembrar que a fiscalização tributária é só mais uma das tarefas que o Delegatário tem por obrigação exercer, graciosamente, para o Fisco – sem receber um só vintém por isso – da mesma forma como tem que fiscalizar a realização da Declaração pelas Operações Imobiliárias – DOI e tantas outras comunicações que a gente não vê por trás do “carimbaço” e acontecem nos bastidores…
No Estado do Rio de Janeiro, especificamente, consta ainda da atual Lei Tributária relativa ao ITD (ou ITCMD, como queira), Lei 7.174/2015, determinação expressa (art. 11, inc. II) que os Registradores (assim como os Notários) são obrigados solidariamente ao pagamento do crédito tributário devido pelo contribuinte ou responsável em relação aos atos praticados por eles ou perante eles, em razão de seu ofício, nas hipóteses em que não exigirem o cumprimento do disposto na legislação tributária.
É importante salientar ainda, neste aspecto, que a fiscalização do Registrador no caso em questão deve se ater a verificar se foi recolhido o imposto (ou se foi certificado pela Fazenda Credora não incidência ou isenção) e não se o recolhimento está correto. Neste sentido mansa e pacífica jurisprudência do TJSP:
CSM/SP. TJSP. 0031287-16.2015.8.26.0564. Registro de Imóveis – Dúvida inversa – Escritura de Doação – Desqualificação – Manutenção da exigência pelo MM. Juiz Corregedor Permanente – Discussão a respeito da base de cálculo a ser utilizada no cálculo do ITCMD – Atuação que extrapola as atribuições do registrador – Dever de fiscalização que se limita ao recolhimento do tributo – Recurso provido para julgar improcedente a dúvida e determinar o registro do título.
Da escritura de doação com reserva
A doação com reserva de usufruto faz-se através de Escritura Pública em qualquer Cartório de Notas. Aqui – diferentemente da questão da competência territorial cravada para o registro, ditada pela Lei Federal nº. 6.015/73 para os atos registrais imobiliários (art. 169) – pelo menos no que diz respeito à forma tradicional e secular de lavratura de Atos Notariais, ainda em papel[ii] – poderá ser escolhido qualquer Cartório de Notas para a lavratura, independente da localização do bem (arts. 8º e 9º da Lei 8.935/94).
É bom ressaltar que a novíssima e louvável regra editada pelo CNJ para atos eletrônicos procura resolver um ponto muito polêmico sobre a competência para a lavratura de atos notariais eletrônicos. Reza o art. 19 do Provimento CNJ 100/2020:
Art. 19. Ao tabelião de notas da circunscrição do imóvel ou do domicílio do adquirente compete, de forma remota e com exclusividade, lavrar as escrituras eletronicamente, por meio do e-Notariado, com a realização de videoconferência e assinaturas digitais das partes.
- 1º Quando houver um ou mais imóveis de diferentes circunscrições no mesmo ato notarial, será competente para a prática de atos remotos o tabelião de quaisquer delas.
- 2º Estando o imóvel localizado no mesmo estado da federação do domicílio do adquirente, este poderá escolher qualquer tabelionato de notas da unidade federativa para a lavratura do ato.
- 3º Para os fins deste provimento, entende-se por adquirente, nesta ordem, o comprador, a parte que está adquirindo direito real ou a parte em relação à qual é reconhecido crédito.
A Lei Tributária Estadual vigente ao tempo do fato gerador ditará qual é a alíquota e a base de cálculo aplicáveis ao caso em tela, além de outros aspectos. No Estado do Rio de Janeiro a questão ainda está agitada sendo importante recordar que o ITD era tratado no Decreto-Lei 05/1975 (Código Tributário do Estado do Rio de Janeiro), vindo posteriormente a ser tratado pela Lei Estadual 1.427/89 que por sua vez foi revogada pela última e atual Lei Estadual 7.174/2015.
Depois de muitos questionamentos sobre a necessidade ou não do recolhimento do imposto na hipótese de extinção do usufruto por falecimento do usufrutuário houve a edição pelo Conselho da Magistratura do Enunciado nº. 07, através do AVISO CGJ 1.058/2014 (D.O. de 05/08/2014), que versava:
- A extinção do usufruto por renúncia ou morte do usufrutuário não é fato gerador da cobrança do ITD, sob pena de incorrer em bitributação, vez que a doação do imóvel constitui fato gerador do imposto de transmissão inter vivos.
Ainda na vigência do referido Enunciado os questionamentos sobre a necessidade do recolhimento do tributo na hipótese aqui retratada não minguaram de modo que em deliberação do Conselho da Magistratura em sessão de julgamento realizada no dia 11/07/2019, por votação unânime, o referido verbete foi cancelado.
Mas efetivamente, a extinção de usufruto é motivo para recolhimento de mais imposto?
Não nos parecer ser legítima a exação na hipótese de extinção de usufruto e ousamos assim entender ainda que a Lei Tributária tipifique a incidência in casu.
Data vênia, na extinção do usufruto por morte não nos parece ocorrer a transferência de qualquer direito real. Em verdade, o que se tem é o desaparecimento, reconhecido expressamente pela Lei civil, da garantia.
O que de fato ocorre no caso é a mera consolidação do domínio na pessoa do nu-proprietário.
É que enquanto pactuado o usufruto temos a cessão transitória de alguns dos atributos da propriedade, sem representar, com isso qualquer transferência do domínio ou do próprio direito real, de forma que a sua extinção, seja por morte, seja por renúncia, importará apenas na consolidação da plena propriedade nas mãos do nu-proprietário. Assim, sem transmissão de direitos, não há que se falar em fato gerador para fins de incidência do ITD.
A propósito, o conceito de Usufruto lapidado pelo digno Registrador Paulista Ademar Fioranelli[iii] deve ser colacionado:
“Usufruto é uma constituição de direito real sobre o imóvel, portanto limitativo da propriedade, figurando de um lado o proprietário com poder de disposição e, de outro, o usufrutuário com os poderes de uso e gozo”.
Complementa a ideia a lição do ilustre Desembargador Aposentado do TJSP, atualmente Advogado, Dr. Carlos Roberto Gonçalves[iv]:
“Caracteriza-se o usufruto, assim, pelo desmembramento, em face do princípio da elasticidade, dos poderes inerentes ao domínio: de um lado fica com o nu-proprietário o direito à substância da coisa, a prerrogativa de dispor dela, e a expectativa de recuperar a propriedade plena pelo fenômeno da consolidação, tendo em vista que o usufruto é sempre temporário; de outro lado, passam para as mãos do usufrutuário os direitos de uso e gozo, dos quais transitoriamente se torna titular.
Passa a existir, destarte, a coexistência harmônica dos direitos do usufrutuário, concernentes à utilização e fruição da coisa, e dos direitos do proprietário, que os perde em proveito daquele, conservando todavia a substância da coisa e a condição jurídica de nu-proprietário”.
Da situação atual
Até o presente momento, ao que parece a melhor orientação a ser seguida é aquela inaugurada quando do procedimento de Dúvida Registral nº 0316851-09.2018.8.19.0001, julgado em 12/09/2019 pelo Egrégio Conselho da Magistratura do TJRJ, sob a relatoria da ilustre Desembargadora Elisabete Filizzola, onde, didaticamente foram traçadas linhas sobre como proceder na hipótese em testilha, que por sua clareza merecem ser prestigiadas:
Cabe ao interessado obter do Fisco a declaração de não incidência ou isenção tributária antes de requerer ao Oficial o cancelamento do direito real, sem o que será legítima a formulação da correspondente exigência.
A exigência de complementação do ITD ou comprovação de sua isenção/não incidência será sempre legítima, seja porque i) o imposto é mesmo devido (pretérito recolhimento de apenas parcela), seja porque ii) cabe só à Fazenda declarar-lhe a isenção ou não incidência, e não ao Oficial (cf. art. 48, § 1º, LODJ).
É importante registrar também que tramita no Órgão Especial do TJRJ a Representação de Inconstitucionalidade nᵒ. 0008135-40.2016.8.19.0000, cujo objeto é a constitucionalidade de dispositivo legal usado como fundamento para a cobrança do imposto aqui tratado e em decisão de 10/06/2019 houve por bem ao Colendo Órgão julgar PROCEDENTE EM PARTE o pedido para declarar a inconstitucionalidade, dentre outro, do artigo 42 da atual Lei Estadual nº. 7.174/2015. Importante anotar que pende até esta data julgamento de um REsp e um RE na discussão.
Por fim, necessário ressaltar que exigências exaradas pelo Registrador, reputadas incabíveis pelo interessado, devem ser desafiadas pela medida específica prevista no art. 198 da Lei registrária, que no caso do Rio de Janeiro desaguará, em reexame necessário e obrigatório no Conselho da Magistratura – porém, por tudo que foi dito, entendemos que o Registrador estará correto em dar cumprimento ao art. 289 da Lei Registral exigindo o pagamento do tributo ou a certificação da isenção ou não incidência pela Fazenda – sendo cabível, pelo interessado, evidentemente, em face do Secretário de Estado de Fazenda, uma vez ofendido seu direito líquido e certo, na espécie, o Mandado de Segurança para fins de alcançar o registro.
Fonte: Jornal Contábil